No meio de tanta miséria africana, como, com certeza, se ousa dizer pelos corredores diplomáticos e por outras esferas de grande influência ocidentais, para nós, africanos, ainda resta uma África que nos orgulha e nos acalenta alguma esperança.
Espaço do Autor Fevereiro 10, 2023
Ainda temos esperanças, apesar daqueles problemas tão comuns e transversais que emperram o continente-berço de se alavancar, hoje como no passado, com a maioria dos seus cérebros ter de emigrar e se instalar ironicamente nas antigas metrópoles – uma traição às lutas anti-coloniais dos nossos antepassados, que certamente já terão compreendido e perdoado.

*Paulo de Jesus
Os nossos heróicos antepassados “compreenderam” (e daí terem perdoado), que, sejamos claros, um dos motivos da fuga do tão precioso e rico capital humano africano para, sobretudo, o ocidente europeu e América do Norte (Estados Unidos e Canadá) é porque o recrutamento e a selecção de quadros para a função pública, por exemplo, são ainda baseados em valores que contrariam a meritocracia, a etnicidade e a transparência públicas.
Em outras palavras, seja no Congo Democrático ou Brazzaville, Zimbabué, Angola e/ou noutras capitais orientais ou ocidentais africanas, o “lambe-botismo” partidário ainda reina. E isso inviabiliza que a instituição “Administração Pública” seja forte e credível, embora reconheçamos os esforços de dotá-la credível e actuante. Porém, a infestação dos “yes-men”, “licenciados” para nunca contrariarem o chefe-mor ou apontarem-no o verdadeiro caminho, é dos males que urge combatermos.
Por outra, a existência de suficiente legislação não impediu ainda que se continue evidente a cultura centralizadora e burocratizada, reveladora de atitudes que se exprimem pelo formalismo, pelo controle dos procedimentos e não dos resultados, em contramão com as recomendações da nova gestão pública.
À moda ocidental, foram criadas algumas “agências”, com as parcerias público-privadas, mas mantiveram os mecanismos tradicionais de controlo, assim é quase nula a necessária autonomia administrativa, financeira e técnica.
Do que se vê, não há margem de decisão autónoma à funcionários, dirigentes e gestores públicos. A decisão, já cozinhada, vem do topo.
Igualmente, a estrutura dos seus recursos humanos não permite aos serviços públicos atingir níveis de desenvolvimento e performance reclamados pelas novas realidades económica, política e social.
É notável que a Administração Pública em África, de um modo geral, esteja ainda muito influenciada por factores culturais, sociológicos, históricos e políticos, e isso trava a prossecução dos graus de eficiência, eficácia, equidade e etnicidade de que estão dotados a maioria dos países desenvolvidos.
Além de factores históricos derivados do pós-colonização, ressente-se hoje a escassez de infraestruturas e recursos humanos altamente qualificados, sem prejuízo da vigência de regimes políticos que tardam a se democratizar, sendo este um impedimento de alto risco.
Rica em recursos naturais capazes de transformar África na maior potência económica mundial, os factores acima descritos não podem mais justificar práticas que contrariem princípios como o do serviço público (em que os funcionários estão ao serviço exclusivo da comunidade e dos cidadãos, prevalecendo sempre o interesse público sobre os interesses particulares ou de grupo), assim como os da legalidade, justiça e da imparcialidade, igualdade, da proporcionalidade, colaboração e da boa-fé, integridade e da competência e responsabilidade, sob pena de o almejado desenvolvimento viver desprovido desses princípios, o que significaria na prática “atraso” ou “recuo”.
Do ponto de vista universalmente aceite, é quase impossível impor o mesmo grau de exigência num país onde a corrupção, em certos aspectos, é culturalmente encarado como uma necessidade, com consequência de tornar-se numa norma, problemática de que o Estado (in)conscientemente também se sente amarrado, sem meios para dele se descolar, resultante de um poder ainda muito mal “intervencionista”, tendencialmente atropelando práticas de independência, equidade, igualdade e autonomia.
Nos contextos quase similares da maioria dos Estados africanos, alguns destes países tentam reconhecer e estudar uma “Administração Pública Africana” - acreditam que os fenómenos e contextualização típica africanas fazem diferença da nova administração pública desenhada do/no ocidente. Seria uma Administração Pública Africana, sem, no entanto, se fechar ao mundo ocidental, pois, para eles, a dificuldade de se passar da teoria à prática é um dilema que não atinge somente os países em vias de desenvolvimento, até porque diversos factores endogénicos influenciam bastante que os desígnios da nova administração pública sejam ainda uma miragem em África.
No meu ponto de vista, essa concepção africanista, encontra algum respaldo naquilo que um dos renomados estudiosos europeus da ciência da Administração Pública, João Bilhim (2016), evoca: “Cada país escolhe aquilo que, no momento, é capaz de fazer com sucesso em matéria de reforma”.
Daí fazer sentido que a adaptabilidade aos contextos, sobretudo político, tenha sido incorporado e feito norma na administração pública nos países em vias de desenvolvimento, no caso, dos países africanos.
Por tudo isso, é-nos complexo fazer uma previsão mesmo que imaginável daquilo que poderá ser a Administração Pública no continente-berço e os seus termos de comparabilidade.
A questão vai além da comparação de entidades diferentes. Voltando a citar Bilhim, “a reforma da gestão pública não é somente uma questão de embaralhar peças de formatos diversos, como em um quebra-cabeças. As peças têm seus próprios significados, que variam de um país para outro (ou mesmo de um sector para outro)”.
Em conclusão, se a interpretação teórica da legislação administrativa não resta dúvida, o mesmo esbarra na sua acção prática, pois, o acesso aos cargos públicos, por exemplo, apesar de se verificar já ser com base em concursos públicos, é infelizmente eivado de suspeições.
Prevalece o acesso aos cargos públicos em função das cores partidárias - os militantes e simpatizantes do partido governante gozam de uma espécie de direito de preferência em detrimento de outros cidadãos que constitucionalmente até têm a escolha de permanecerem apolíticos. Também são questionáveis a independência e os critérios de selecção dos órgãos recrutadores.
Por estas e por outras, temos muita massa cinzenta africana a despachar-se para fora do continente-berço, por culpa de uma Administração Pública inoperante.
E isso assim não pode ser!!!
* Paulo de Jesus, advogado, jornalista, agente de futebol registado na FIFA e consultor em negócios internacionais ligados à África. É doutorando em Administração Pública e tem um mestrado em Gestão de Políticas Públicas; licenciado em Direito e em Ciências Políticas/Relações Internacionais. Entre outras especializações, é ainda pós-graduado em Contratação Pública e em Direito Desportivo.
Para donativos monetários ao projecto:
Novo Banco - Portugal - IBAN: PT50 0007 0000 0016 8454 5662 3 - SWIFT/BIC: BESCPTPL
Banco de Comércio e Indústria (BCI), R. Rey Katiavala, 224, Luanda - Conta 4102547210-001